Muito antes de Portugal conquistar o seu primeiro título europeu, em 2016, havia já uma seleção nacional que representava o bairro da Falagueira, na Amadora. Nesta crónica, Jorge Pessoa e Silva recorda com nostalgia os tempos em que o Europeu de futebol se disputava nas ruas do bairro, com jogadores improvisados e regras negociadas entre miúdos.
O Portugal da Falagueira
«O Toni era uma nulidade no futebol, mas ficou com a Paula, a miúda mais gira da Falagueira», recorda Jorge Pessoa e Silva. Apesar das fragilidades do avançado, a seleção do bairro conquistou o Europeu de 1980, uma vitória «uma injustiça» por não terem sido recebidos em Belém por Ramalho Eanes.
Pessoa e Silva, que se descrevia como «o precursor» de Paulo Futre, lembra com vivacidade a formação dessa equipa, com jogadores como o «Zé Gordo na baliza, o Fininho no meio campo ou o Caricas na posição de à mama, posição mais tarde batizada de ponta de lança».
A "Lei do Fora de Jogo"
Nas ruas da Falagueira, as regras do futebol eram adaptadas à realidade dos miúdos que ali jogavam. «A Lei do Fora de Jogo era a única que uma criança nunca entendia e, por isso, a riscava», explica o cronista.
Sem árbitros oficiais, as decisões sobre lances polémicos eram negociadas entre os jogadores. «Na ausência de VAR, desenvolvíamos também a diplomacia e a capacidade de persuasão. É verdade que o dono da bola e o mais forte tinham mais peso na decisão, mas havia espaço para a arte de negociar, da bola que entrou ou não; ao penálti que deve ou não ser marcado...», recorda.
As aulas práticas da rua
Mais do que um mero jogo, os encontros da seleção da Falagueira eram também «aulas práticas» de diversas disciplinas. «Quando a baliza se delimita por duas pedras, muitos golos atribuem-se por complicados exercícios trigonométricos», exemplifica Pessoa e Silva.
Além disso, as quedas no «piso de asfalto» ensinavam lições de física e serviam de «aulas práticas» sobre resistência à dor. «Cair num piso de asfalto doía a dobrar: quando caíamos e quando chegávamos a casa com a roupa rasgada e feridas para desinfetar. Preferia o álcool em carne viva aos sermões cantados da minha mãe», recorda o cronista.
O "Europeu" da Falagueira
Apesar de não haver qualquer torneio oficial, os miúdos do bairro organizavam o seu próprio Europeu, convidando jogadores de outras zonas. «Vinham miúdos de outros bairros e logo ali distribuíamos nacionalidades sem necessidade de passaporte, desde que a Falagueira fosse Portugal», explica Pessoa e Silva.
Os jogos «começavam de manhã e acabavam com o cair da noite. Havia apenas um intervalo, os 15 minutos da praxe, a que também chamávamos de... almoço. O apito final era dado pelo grito dos pais a chamar-nos para casa.»
O fim de uma era
Passadas décadas, Pessoa e Silva regressa à Falagueira e encontra o «nosso estádio» transformado num «parque de estacionamento a céu aberto». «Já não se organizam Europeus por aqui...», lamenta o cronista, num final que reflete a nostalgia de um tempo em que o futebol se vivia de forma mais livre e genuína.